Texto de Carlos Javiert Gonzáles Serrano – Filósofo – Publicado na Tribuna, Espanha, em 19 de outubro de 2023
Tradução livre de Sérgio A. Scacabarrozzi – Casa Branca
Com uma silenciosa e perigosa normalidade, vamos nos esquecendo do valor de escrever à mão, que conecta nossa corporalidade com nossa psique em um exercício que potencializa as capacidades cognitivas. Cabe acrescentar que, com a escrita à mão, também jogamos com a compreensão do mundo. Em todas as minhas classes de ensino médio e universitário, convido os meus alunos para escreverem à mão porque essa ação, que parece insignificante, congela nossa realidade hiperestimulada e oferece um tempo precioso para poder entender o que nos rodeia. A escrita nos permite recuperar nosso tempo.
O problema dos ritmos acelerados que temos acolhido é que temos introduzido essas pressas em todos nossos processos vitais: comemos rápido, lemos e escrevemos rápido, passeamos rapidamente. Tudo tem que estar sujeito aos padrões da produtividade, da rentabilidade, da utilidade e da eficácia. Em parte, por isso se escreve menos à mão, porque é um processo que requer tempo e cuidado: a tecnologia tem automatizado diversos processos que faz alguns anos levavam tempo e encerravam altas doses de concentração, mas também de prazer.
Além disso, a imediatez e a busca de incentivos contínuos tem diminuído nossa paciência cognitiva, queremos tudo aqui e agora, e dificilmente toleramos a demora no resultado. Com isso, nossa vida tem empobrecido. Isso não consiste em execrar a tecnologia, mas em impedir que o instrumento nos instrumentalize. Em um cenário de urgências e pressa, a escrita à mão nos engrena com nós mesmos, com nossas próprias preocupações e com o mundo que nos circunda. Existe algo que também deveria preocupar-nos, o chamado analfabetismo funcional: estamos arriscando que as novas gerações saibam escrever, ler e pensar mas que não queiram escrever, ler nem pensar porque lhes damos tudo pronto.
Como se isso fosse pouco, ainda estamos acostumados a ficarmos doentiamente ocupados. Neste panorama de pressa e stress, escrever à mão converteu-se em um ato de saudável rebelião e lúcida dissidência, em uma reinvindicação de nossa liberdade e em uma reclamação de nosso espaço de independência. A escrita pausada, assim como qualquer atividade que detenha nossos ritmos vertiginosos, se troca por uma saudável e necessária revolução para reconquistar nossa atenção, negociada como um produto a mais com que as empresas negociam com descaso.
Tomar uma caneta e sentir que somos nós que escrevemos, que exercemos força contra o papel… nos faz donos conscientes do nosso corpo. A escrita à mão nos une ao mundo, nos torna participantes dele através de objetos que podemos manipular, com que nos sujamos ou podemos errar. Com um teclado, tudo pode ser borrado sem deixar rastro de erro, sem manchas e, definitivamente, sem marca humana. Como lembra Aristóteles, somos animais de hábitos: o principal é ter costumes sãos que nos ajudem a ficarmos melhor física e emocionalmente e desenvolver-nos emocional e mentalmente. Hoje, grande parte dos adolescentes e muitos adultos manifestam stress e nervosismo se não permanecerem conectados constantemente ao celular, mas o que não questionamos são os hábitos. Passamos horas pendurados a esses dispositivos e sofremos uma autêntica dependência que não pomos em dúvida, nos colocamos confortavelmente alinhados com nosso ânimo e inteligência.
Trata-se de uma dependência normatizada, o que a faz mais suave. Para disputar com esse império das telas, temos que plantar ações que nos seduzam. Uma delas pode ser a escrita à mão, que ajuda a nos conhecer, a tomar consciência da realidade. Podemos escrever um diário para refletir sobre pensamentos e emoções; escrever cartas a amigos e familiares, reais ou fictícios; escrever um conto ou um poema; escrever uma lista de tarefas para organizar nossas responsabilidades e planejar nossa jornada diária; podemos transcrever nosso livro favorito ou elaborar um caderno de citações.
O ser humano é essencialmente narrativo. Sua identidade se forja através dos relatos que conta sobre si mesmo aos demais e a si próprio, em uma rede historiográfica que confecciona a partir de suas recordações, do sempre efêmero presente e das expectativas que guarda a respeito do futuro. O ser humano é um ser que se escreve ou, em terminologia do filósofo Jean-Luc Nancy, que se ex-creve, que se dá à existência mediante a ação e o uso responsável da palavra. Ao escrever, reconquistamos, com isso, nossa liberdade.