Uma denúncia contra o Hospital de Caridade de Vargem Grande do Sul foi realizada no Ministério Público, referente a casos de violência obstétrica. A previsão é de que na próxima quarta-feira, dia 7, o MP retorne com o parecer favorável ou não sobre a denúncia.
Os dados para a denúncia foram coletados pela jornalista e doula Duda Oliveira, de Vargem. A denúncia foi resultado de anos de trabalho, onde Duda reuniu casos de violência obstétrica, após usar suas redes sociais como um canal para vítimas do abuso. A doula também se mostra indignada com o impedimento da entrada de doulas no hospital de Vargem, mesmo após a aprovação da lei, de autoria do vereador Guilherme Contini Nicolau (MDB), em agosto de 2022.
À Gazeta de Vargem Grande, ela contou que desde que sofreu violência obstétrica em Vargem, em outubro de 2020, percebeu que o atendimento que recebeu era rotineiro. “Aquilo tudo não tinha acontecido só comigo. Não era azar, era a rotina do hospital. Os protocolos do hospital estavam e continuam desatualizados, não seguem as diretrizes atuais de assistência ao parto ou a cesárea e muito menos as evidências científicas. Depois de elaborar tudo o que aconteceu, eu percebi que precisava fazer alguma coisa, o que aconteceu comigo não poderia acontecer com mais ninguém. Então, em 2021, entrei em um curso de doulas, queria entender mais a fundo o sistema obstétrico, as diretrizes, as evidências, a humanização do parto”, comentou.
Duda informou que, depois de fazer o curso, percebeu que precisava juntar a doulagem com o jornalismo e, ainda em 2021, começou a coletar relatos de parto que continham violência obstétrica em Vargem. “Chegaram alguns poucos relatos à época, as pessoas não conheciam meu trabalho, então creio que não tinham confiança em contarem suas histórias. À época, as pessoas contavam suas histórias e eu relatava anonimamente no meu Instagram. Mas alguma coisa estava incompleta e parei de coletar os relatos”, disse.
“O ano passou, continuei denunciando e abordando violência obstétrica nas minhas redes sociais e me aprofundando cada vez mais nos estudos sobre o tema. Elaborei e consegui que a lei da doula fosse aprovada em Vargem e achei que seria um avanço para a assistência ao parto na cidade. Porém, fui surpreendida pelo hospital, quando não seguiram a lei sancionada em agosto de 2022 e continuaram não permitindo a entrada de doulas na instituição”, comentou.
Para que a lei da doula fosse cumprida, Duda disse que entrou em contato diversas vezes com o hospital para cobrar, mas não obteve nenhum retorno. “Em um caso, liguei para o Departamento de Saúde de Vargem e a diretora usou o estagiário para mentir dizendo que ela estava em reunião e, por isso, não me atenderia. Ela só não contava que eu estava ouvindo a conversa dos dois e as risadas dela por trás do telefone. Cobrei o hospital e a prefeitura sobre isso, postei nas minhas redes sociais, mas não obtive qualquer retorno sobre esse assunto, mesmo o hospital garantindo que tomaria providências. A prefeitura sequer se manifestou”, relatou.
“Ali, eu percebi que se esse era o tratamento para quem estava tentando garantir o direito de trabalhar, imagina como não era o tratamento para quem tentasse garantir o direito a ter uma doula, um parto respeitoso, um atendimento baseado em evidências científicas”, completou.
Ao jornal, ela contou que a partir desse momento, decidiu que não ficaria mais calada e passou a denunciar nas redes sociais cada relato de violência obstétrica que chegava. “Mas percebi que ainda era muito pouco. Então, em 2023, tomei a decisão de voltar a coletar relatos de parto que continham violência obstétrica. A princípio, era para coletar relatos de diversas cidades do país. Eu coletaria os relatos, alteraria os nomes para manter o anonimato das vítimas e postaria nas minhas redes sociais com o intuito de mostrar que a violência obstétrica existe e acontece mais do que nós podemos imaginar”, comentou.
“Porém, depois de alguns relatos de cidades variadas, começaram a chegar dezenas de relatos de Vargem Grande do Sul. Creio que eu ser da cidade tenha influenciado, mas mesmo assim, ter mais de 30 relatos de violência obstétrica, de diversos anos, só mostrava que a violência acontecia há décadas. Só mostrava que eu estava certa: a violência obstétrica era rotina do hospital”, pontuou.
Duda ressaltou que foi aí que percebeu que apenas denunciar os relatos em suas redes sociais não bastava e que ela, como jornalista, tinha o dever de encaminhar todas as denúncias ao Ministério Público. “Eu não poderia me omitir diante de todo aquele material. Diante dessa ideia, percebi também que somente encaminhar os relatos como haviam chegado era muito pouco, eu precisava de mais detalhes. Neste momento, busquei uma companheira de luta de São João da Boa Vista, a Letícia Siquelli, que é advogada especialista em violência obstétrica e atua na região. Ela orientou que seria interessante ter vítimas denunciando o hospital publicamente, porque desta forma, conseguiríamos reunir provas e encaminhar ao Ministério Público. E assim foi feito”, contou.
“Mandei mensagem para cada uma das vítimas de Vargem perguntando se tinham interesse na denúncia pública e, das mais de trinta vítimas, cinco delas toparam denunciar fora do anonimato – eu inclusa. A partir daí, a Letícia prestou consultoria individual a cada vítima, ouviu cada um dos relatos e complementou o que elas já haviam escrito, orientou quanto às provas, buscou o prontuário de cada uma e elaborou a denúncia. Foram enviados ao Ministério Público 74 documentos, que incluíam todas as denúncias públicas e anônimas, provas e prints de grupos públicos nas redes sociais, onde algumas vítimas relatavam a insatisfação quanto ao hospital de Vargem”, contou.
A denúncia foi encaminhada ao Ministério Público dia 18 de maio de 2023 e, atualmente, os envolvidos aguardam o retorno do Ministério Público, na expectativa de que alguma providência seja tomada. “Gostaria de deixar claro que não é perseguição e muito menos vingança contra o hospital ou as equipes que nos atenderam, mas sim, justiça. Não podemos permitir que gestantes entrem para parir seus filhos na insegurança se sairão de lá vivas, ou mesmo com seus filhos no colo”, disse.
Duda contou que, entre os relatos, houveram inúmeros casos de negligência no pré-natal; negligência em realização de exames durante o trabalho de parto e parto; gestantes que ficaram completamente sozinhas durante o trabalho de parto e sem monitoramento adequado; gestantes que tiveram braços amarrados durante a cesárea; gestantes que tiveram braços e pernas amarrados durante o parto; gestantes que tiveram o direito ao acompanhante negado antes, durante e depois da pandemia; gestantes que foram atendidas por otorrinolaringologistas, ortopedistas e anestesiologistas durante suas cesáreas; gestantes que em nenhum momento foram atendidas por obstetras durante o trabalho de parto e parto; gestantes vítimas da manobra de Kristeller (empurrar a barriga), já proibida; gestantes vítimas de episiotomia (pique), que não possui qualquer evidência científica de que facilita ou agiliza o parto; lactantes que não foram auxiliadas em qualquer momento sobre amamentação; entre outras violências contra a gestante, lactante e recém-nascido.
“Denunciar o que nos aconteceu deveria ser o mínimo a se fazer. Não deveriam enxergar esse ato como ruim, porque não estamos exigindo regalias, estamos exigindo nossos direitos. E ter os direitos resguardados é o mínimo que uma instituição de saúde pode garantir. A resposta que sempre temos quando questionamos porque não há melhorias é que não há reclamações sobre os atendimentos. Agora, com essa denúncia, há reclamações de sobra, portanto, não tem como esse sistema obstétrico não mudar. As gestantes e os recém-nascidos tem o direito à vida e à saúde. Tratar esse público com o devido respeito é o mínimo que essa instituição de saúde pode proporcionar”, comentou.
Para Duda, apenas mudar protocolos não basta. “Protocolos só são um pedaço de papel. Os funcionários precisam ser bem treinados, os médicos têm o dever de se atualizar, está no Código de Ética deles. Não há qualquer possibilidade de manter uma maternidade sem obstetras, sem enfermeiros obstétricos, sem anestesistas de plantão, sem salas PPP (quarto pré-parto, parto e puerpério), com um número alarmante de cesáreas (mais de 70%, quando o recomendado pela OMS é no máximo 15%) e sem qualquer respaldo para casos onde o bebê precise de UTI Neonatal”, disse.
A jornalista finalizou a entrevista usando uma frase de Michel Odent, que diz: ‘Para mudar o mundo, é preciso, primeiro, mudar a forma de nascer’. “As coisas precisam mudar e a crítica e as denúncias são para que isso aconteça. Todas as vítimas que denunciaram falaram basicamente a mesma coisa: ‘estou denunciando porque não quero que isso aconteça com mais ninguém’. Agora, é aguardar a resposta do Ministério Público e qual será a reação do hospital e dos demais responsáveis pela maternidade”, completou.
Sem resposta
O jornal vem tentando contatar o Hospital de Caridade sobre o tema desde o final de março, quando os casos ainda estavam sendo coletados, para saber se o hospital tinha conhecimento dos relatos, o que deve ser feito para diminuir os casos de violência obstétrica em hospitais e se o hospital estuda algum meio.
A Gazeta também havia questionado o porquê de a lei da doula ainda não estar sendo cumprida e o que falta para que a lei seja, de fato, implementada na cidade. No entanto, até o fechamento desta edição, não obteve retorno.