Marina Lima
Desde pequena, eu pressentia que um dia teria um bebê loiro de olhos azuis, mas guardava esse segredo para mim e poucas vezes ousei falar isso com a voz para fora. Leon nasceu exatamente como eu sonhei e foi o encontro com um sentimento conhecido, mas numa grandeza desconhecida: o Amor. No entanto, algumas semanas depois de completar um ano e meio de vida, ele adoeceria de forma abrupta e agressiva e flertaríamos com a morte desde o primeiro dia na UTI. Depois de um ano e sete meses de hemodiálise, intubações, cirurgias, dúvidas sobre o diagnóstico, dezenas de remédios e de exames complexos, quimioterapias, infecções, complicações, um transplante e uma pneumonia, a morte viria buscá-lo.
No livro “Teoria King Kong”, Virginie Despentes afirma que “todo trauma tem a sua literatura”. Porém, nos inúmeros livros que li e pesquisei sobre luto e morte, não encontrei uma literatura para o meu trauma. Porque as reflexões sobre esses temas tão delicados (tabus?) parecem não comportar a morte de bebês e crianças, seres em formação cujas vidas foram inviabilizadas, ceifadas. Por isso, debruçar-me sobre o assunto é quase como um artista se debruçar sobre a folha em branco. O que falar sobre isso? Quantas pessoas pararam para refletir sobre a “morte de anjos”? Por outro lado, a dor pela perda de um filho é “a pior dor que uma vida humana pode suportar” – seria esta frase uma unanimidade em todas as culturas humanas? Preciso falar que eu morreria em seu lugar?
O esforço deste livro, de narrar uma dor inenarrável, é fruto, antes de qualquer coisa, da necessidade de inventar um sentido para o luto. Para além do consolo da minha amorosa rede de apoio, traduzir em palavras uma experiência extrema de amor e de dor, de vida e de morte, é confiar que a escrita pode abrir um caminho para elaborar uma dor que tende a me aprisionar em mim mesma. É uma luta para me colocar diante do espelho, encarar a dor numa prática de resistência e fazer dela uma experiência compartilhada. Afinal, se não partilhamos a dor, corremos o risco de acreditar que estamos sozinhos e, pior, corremos o risco de ser destruídos por ela.
Como Annie Ernaux, no livro “O Acontecimento”, sinto que “o verdadeiro objetivo da minha vida talvez seja apenas este: que meu corpo, minhas sensações e meus pensamentos se tornem escrita, isto é, algo inteligível e geral, a minha existência completamente dissolvida na cabeça dos outros”. Recentemente, ouvi uma oração budista: “que eu tenha sofrimento suficiente para despertar em mim a mais profunda compaixão e sabedoria possíveis”, e esse talvez seja o cerne da questão. Um sofrimento partilhado pode ajudar a transformar a dor em compaixão e a compreender a experiência coletiva do ser humano. Com este livro, espero apoiar outras pessoas que vivem ou viverão processos de luto, especialmente as “mães de anjos”, como eu.
No livro “Sobre a Morte e o Morrer”, a psiquiatra Elisabeth Kübler-Ross divide o luto em cinco fases: negação, revolta, barganha, depressão e aceitação. A primeira fase é a negação, uma espécie de “para-choque depois de notícias inesperadas e chocantes”, em que negamos o que aconteceu, até conseguir usar “mecanismos de defesa menos radicais”. A negação inicial acontece porque somos imortais no nosso inconsciente, e a notícia de uma doença grave nos coloca de frente ao fantasma da morte. Quando paramos de negar a doença ou a morte e nos conectamos com a realidade, entendemos que não é possível reverter a situação, e o sentimento que passa a predominar é a revolta; é o estágio do “por que comigo?”. Já na fase da barganha, buscamos soluções para sair da realidade dolorosa, entramos em “algum tipo de acordo que adie o desfecho inevitável” e apelamos a Deus, ao universo e/ou à vida uma recompensa pelo sofrimento. A depressão é a fase da introspecção por excelência, em que as sensações de impotência e de melancolia são tão extremas, que buscamos o isolamento do mundo externo. Nessa fase, predominam a apatia, o desânimo, a falta de perspectiva e de vontade de realizar as atividades mais básicas, por isso, é preciso vigiá-la para não se tornar um luto patológico. Por fim, a aceitação é considerada a última fase do luto por ser o momento a partir do qual conseguimos enxergar a realidade e, ainda assim, aceitá-la: por meio da nossa reinvenção, que requer um trabalho ativo, seguimos adiante.
A divisão do luto em fases não é nítida, e uma fase não acaba quando a outra começa, pelo menos foi assim que eu vivi e vivo o luto, muitas vezes enfrentando todas as fases ao longo de um mesmo dia. Por isso, não respeitei a ordem identificada por Kübler-Ross na nomeação dos capítulos do livro; além disso, acrescentei outros dois capítulos, que intitulei de “a esperança” e “o transplante”.
Ao aceitar a morte do meu filho, eu não retornei para o mesmo mundo. Hoje, tudo transborda significados, vejo sinais divinos onde antes não via, tenho clareza do meu propósito de vida, aprecio cada instante de alegria, não me desespero nas aflições, sei mais sobre amor, desapego e transitoriedade, não aceito nada que não seja puro e verdadeiro e eleve o meu espírito, faço trabalho voluntário para nutrir um dos mais nobres sentimentos humanos, a gratidão, e não temo mais a morte.